segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ALMAS MORTAS

Em meados do século 19, Nicolai Gogol publicou “Almas Mortas”, que viria a se tornar um clássico da fecunda literatura russa. Leio com gosto esse texto derramado, que entremeia saborosas descrições de vilas do interior, habitações populares e paisagens geladas com o relato irônico dos costumes do povo e do regime feudal que mantinha os camponeses em regime de escravidão. A personagem central, Tchitchicov, em busca de fortuna, percorre o país para comprar “almas mortas” – registros de serviçais falecidos, pelos quais seus proprietários continuavam a pagar impostos, mesmo depois da morte. Em sua peregrinação, o desonesto comprador depara com os mais curiosos representantes de uma certa classe de proprietários de “almas”, num desfile de diálogos cômicos com personagens bajuladoras, mentirosas, ingênuas, rudes, inescrupulosas. O contraponto é explícito: um governo de regime desonesto para um povo de honestidade claudicante. De permeio, descrições de um país bonito e generoso, que poderia abrigar uma sociedade sadia e justa.
O leitor saboreia as páginas do livro, a cogitar do “nonsense” que devia ser a posse das tais “almas”, a compra das mortas e a inacreditável passividade do povo diante de tamanhos despautérios.  
Faz uma pausa em sua calma leitura e abre o jornal.
E atina que, passados quase dois séculos da publicação de Gogol, vive num país tropical de generosa natureza, cujo governo lhe subtrai quase cinco meses de trabalho em forma de impostos, a cada ano. E que, se quiser atendimento de saúde razoável, tem que pagar plano de saúde privado. E que, saindo de casa, nunca sabe se voltará incólume, mercê da violência que habita as ruas. E que tem que pagar o estudo dos filhos. E que se vê representado no parlamento por políticos envolvidos em cabeludos processos, se calhar algum vigiado pela Interpol. E que alguns desses políticos, num estado supostamente leigo, misturam pateticamente suas convicções religiosas com a atuação parlamentar. E, por fim, que, em estradas mal conservadas e sempre engarrafadas, ele sempre observa motoristas espertinhos a trafegar no acostamento.
Almas mortas... almas mortas...

MALVIVAJ ANIMOJ

Meze de la 19-a jarcento, Nikolaj Gogol publikigis “Malvivaj Animoj”, kiu fariĝis klasikaĵo en la fekunda rusa literaturo. Mi ĝue legas tiun fluan tekston, kiu miksas plezurigajn priskribojn de internlandaj vilaĝoj, popolaj loĝejoj kaj frostaj pejzaĝoj, al ironia rakontado pri la popolaj kutimoj kaj pri la feŭda reĝimo, kiu tenadis kamparanojn en sklaveca reĝimo. La centra figuro, Ĉiĉikov, serĉe de riĉiĝo, trairas la landon por aĉeti “malvivajn animojn” – registraĵojn de mortintaj servistoj, por kiuj la posedantoj plu pagadis impostojn, eĉ post la morto. Dum sia pilgrimado, la nehonesta aĉetanto alfrontas plej kuriozajn reprezentantojn de ia speco de posedantoj de “animoj”, je parado de komikaj dialogoj kun roluloj flatemaj, mensogemaj, naivaj, krudaj, senskrupulaj. La kontrapunkto estas evidenta: malhonestreĝima registaro kaj popolo kun lamanta honesteco. De tempo al tempo, priskriboj pri bela, malavara lando, kiu povus esti vivejo por sana, justa socio.
La leganto gustumas la paĝojn de la libro, meditante pri la sensenceco, kiu certe estis la posedo de tiaj “animoj”, la aĉetado de la mortintaj kaj la nekredebla pasiveco de popolo fronte al tiaj absurdaĵoj.
Li paŭzas je sia trankvila legado kaj malfermas ĵurnalon.
Kaj li ekkonscias, ke preskaŭ du jarcentojn post la publikaĵo de Gogol, li vivas en tropika lando  kun malavara naturo, kies registaro deprenas de li preskaŭ kvin monatojn da laboro en formo de impostoj, ĉiujare. Kaj ke, se li volas akcepteblajn sanzorgojn, li devas pagi privatan sanplanon. Kaj ke, se li eliras el sia hejmo, li neniam estas certa, ke li revenos senvunde, pro la perforto reganta surstrate. Kaj ke li devas pagi por deca studado de la gefiloj. Kaj ke lin reprezentas en la parlamento politikistoj implikitaj en ombraj juĝprocesoj, eventuale iu el ili estas serĉata de Interpol. Kaj ke iuj el tiuj politikistoj, en ŝtato supozeble laika, patose miksas siajn religiajn konvinkojn kun parlamenta agado. Kaj fine, ke sur malbone konservataj ŝoseoj, ĉiam trafikŝtopitaj, li ofte observas, ke ruzetaj aŭtostirantoj iras sur la ŝoseflanko, kie tio estas nepermesata.

Mortintaj animoj... mortintaj animoj...  

4 comentários:

  1. A vida imita a Arte e a História se repete no vasto e magnífico cenário do mundo...
    Obrigada, Paulo Sua capacidade de resumir é tão boa que nos incita a ler a referida obra.

    ResponderExcluir
  2. E a literatura segue cumprindo seu papel (principalmente a dita boa literatura):
    a recriação e a transformação poética da realidade. Gosto muito dos autores russos!

    ResponderExcluir
  3. Este o milagre: clássicos da literatura mundial reconstroem ficcionalmente as peripécias humanas de um tempo específico, de uma sociedade específica - e entanto nada mais atemporal e universal que isto! Com olhar de águia, de poeta e leitor experiente, o cronista tece reflexões que nos oferecem nova peça literária. E o milagre segue!

    ResponderExcluir
  4. Preciso ler o livro! A comparação com o Brasil de hoje é que nos entristece a todos. (Nem todos...) Ótima resenha, Paulo!

    ResponderExcluir