terça-feira, 30 de dezembro de 2014

EDUCAÇÃO E FRUTOS DO MAR



O restaurante é pequeno, simples, despojado e de bons sabores. O dono acumula as funções de maître, estudioso que é das sutilezas da gastronomia.
Penso um pouco e acabo escolhendo o óbvio: fettuccine com frutos do mar. Ele aprova, condescendente. Principia então o melhor e mais delicado momento de um jantar fora de casa: a espera do prato. Se vem muito rápido, banaliza; se demora além do razoável, traz impaciência ao estômago; se chega no tempo certo, não há melhor aperitivo. Enquanto isso a conversa flutua, sem peso.
Chega a seu tempo. O garçon o serve e deixa ao lado um pequeno recipiente com queijo ralado. Chega de conversa; ocupem-se as  bocas com melhor proveito. Vem o dono-maître e pergunta se está tudo de acordo. Não devia ter perguntado.
Faço-me de desentendido e indago:
-                      Dizem que queijo ralado e frutos do mar não se coadunam. É verdade?
O homem faz uma expressão de contentamento por ter sido consultado e assegura:
-                     É verdade! Em dez anos de funcionamento, o senhor é o primeiro cliente que  levanta a questão. Na Itália, colocar o quejo na mesa já seria heresia. Os sabores brigam.
-                      Pois veja. Tenho um irmão que não tem papas na língua. Ele diria que é falta de educação.
O homem me olha, meio assustado.
-                     Não se assuste, é modo de falar. A palavra “educação” tem pelo menos três acepções. Pode significar “bons modos”, “boas maneiras”: palitar os dentes à mesa é falta de educação. Pode significar “instrução”, “conhecimento”: Fulano tem educação universitária. E pode significar “apuro dos sentidos”, “treinamento do gosto”: ouvir Wagner exige educação do ouvido. Meu irmão diz que certos sabores exigem que se treine o paladar. Como tudo na vida. Não vai nisso qualquer ofensa.
O maître concorda em silêncio e se retira, um tanto desconcertado.
As outras pessoas (há outros à mesa) tinham parado de comer. Após um curto silêncio, alguém murmura:
-                     Certas preleções não cabem à mesa. Pura falta de educação.
E tornamos todos ao excelente repasto.



EDUKADO KAJ MARFRUKTOJ

La restoracio estas malgranda, simpla, senornama kaj kun bonaj gustoj. La posedanto plenumas la taskon ankaŭ de ĉefservanto, ĉar li estas studema pri subtilaĵoj de gastronomio.
Mi iom pensas kaj fine mi elektas ordinaraĵon: pastaĵon kun marfruktoj. Li aprobas, bonvoleme. Komenciĝas tiam la plej bona kaj delikata momento de eksterhejma vespermanĝo: la atendado de la manĝaĵo. Se ĝi alvenas tro rapide, temas pri banaligo; se ĝi prokrastiĝas pli ol konsilinde, senpacienciĝas la stomako; se ĝi alvenas ĝustatempe, ne eblas pli taŭga apetitvekilo. Dume, konsersacio ŝvebas senpeze.
Ĝi alvenas ĝustatempe. La kelnero servas kaj lasas flanke etan ujon da raspita fromaĝo. Ĉesu la konversacio; okupiĝu la buŝoj per io pli profitodona. Alvenas la ĉefservanto kaj demandas, ĉu estas ĉio en ordo. Li devus ne demandi.
Mi ŝajnigas nescion kaj demandas:
-                     Oni diras, ke raspita fromaĝo kaj marfruktoj ne kongruas inter si. Ĉu tio estas vera?
La viro mienas kontente pro la konsulto kaj asertas:
-                     Vere! Post dek jaroj da funkciado, vi estas la unua kliento, kiu starigas ĉi tiun demandon. En Italujo, kunmeti fromaĝon surtablen estus jam herezo. La gustoj malpacas inter si.
-                     Nu, vidu. Mi havas fraton, kiu posedas akran langon. Li dirus, ke tio estas manko de edukiteco.
La viro rigardas min iom timigita.
-                     Trankviliĝu, tio estas nur esprimmaniero. La vorto “edukado” havas almenaŭ tri signifojn. Ĝi povas signifi “taŭgan konduton”, ”taŭgan sintenon”: ĉetable purigi la denton per ligna pingleto estas manko de edukiteco. Ĝi povas signifi “kleriĝon”, “konon”: Petro havas universitatan edukitecon. Kaj ĝi povas signifi “trejniĝon de  la sentumoj”, “trejnado de gustoj”: aŭskulti la muzikon de Wagner postulas edukiĝon de la oreloj.  Mia frato diras, ke ĝuado de  iuj manĝaĵoj postulas, ke oni trejnu sin pri la gusto. Kiel ĉio en la vivo. Ne estas en tio ia ofendo.
La estro silente konsentas kaj foriras iom konsternita.
La aliaj homoj ĉe la tablo (estas aliaj ĉetable) senmanĝe atentas. Post mallonga silento, iu murmuras:
-                     Iaj prelegoj ne konvenas ĉe la tablo. Pura manko de edukiteco.

Kaj ni ĉiuj revenis al la frandinda manĝaĵo.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

UM CLÁSSICO - "LUTO E MELANCOLIA"


Sem qualquer veleidade de conhecimento em psicanálise, pelo motivo mesmo de me faltar tal horizonte, tomo, cheio de respeito, o bonito volume editado pela Cosacnaify de “Luto e Melancolia”, de Sigmund Freud. Tradução preciosa de Marilene Carone, vem acrescido de vários textos de especialistas, a enriquecer e dar corpo ao livrinho. E vem, sobretudo, com uma riqueza exclusiva: sublinhado a lápis por meu irmão, em vários trechos que julgou dignos de destaque. Presente inestimável!
                Devíamos todos os humanos ler este livrinho, que na verdade não passa de um longo artigo. Longo, elegante, requintado na forma e no conteúdo, uma lição de como se pode domar o pensamento e a palavra e colocá-los a serviço da perspicácia, da sabedoria, da criatividade, da arte. Vai muito além da distinção instrutiva (e útil!) entre luto e melancolia – que são bem opostos, muito mais do que as aparências indicam. Faz por exemplo este comentário, retirado de outro texto, a respeito daquilo que todos procuramos, às vezes obsessivamente:

... podemos dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da ‘Criação’. “

                Fica o ensinamento: o luto não é doença, resolve-se por si, pois permanece na camada do ego consciente; a melancolia/depressão se volta para o inconsciente e esconde uma raiva, narcisismo disfarçado.  Na queixa  do melancólico se oculta uma acusação.
Não é só para se concordar, é para se pensar. Como esta consideração do implacável conhecedor da alma humana, a propósito do melancólico que vive a se depreciar:

“Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que sempre só cuidou de ocultar as fraquezas de seu ser, talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa.”

                Luto e Melancolia” é desses textos a que se deve voltar. É muito provável que cada deslumbrado leitor encontre outros ângulos e modos de o ler. E que eu mesmo, quando o reler, venha a escolher outros ainda. É por isso que se trata de um clássico. Obrigado, irmão.

KLASIKAĴO – “FUNEBRO KAJ MELANKOLIO”

                Sen ia prretendo pri scio pri psikanalizo, pro la motivo mem, ke mankas al mi tia horizonto, jen mi prenas respektoplene la belan volumon eldonitan de Cosacnaify de “Funebro kaj Melankolio” , de Sigmund Freud. Rafinita traduko al la portugala lingvo de Marilene Carone, ĝi enhavas krome plurajn tekstojn de fakuloj, kiuj pliriĉigas kaj enkorpigas la libreton. Kaj precipe ĝi enhavas ian ekskluzivan riĉaĵon: pluraj linioj substrekitaj de mia frato, kie li trovis ilin elstarigindaj. Nekalkuleble valora donaco!
                Ĉiu homo devus legi ĉi tiun libreton, kiu fakte estas nur longa artikolo. Longa, eleganta, rafinita laŭforme kaj laŭenhave, ia leciono pri tio, kiel eblas dresi la penson kaj la vortojn kaj metis ilin je la servado de subtileco, de saĝeco, de kreemo, de arto. Ĝi trafas trans la instruan (kaj utilan!) distingon inter funebro kaj melankolio – kiuj estas ja kontraŭaj, multe pli ol tion ŝajnigas supraĵa rigardo. Ĝi ekzemple faras ĉi tiun komenton, prenitan el alia teksto, pri tio, kion ni ĉiuj serĉadas, foje obsede:

“... oni povas diri, ke la intenco, ke la homo estu feliĉa, ne troviĝas en la plano de la ‘Kreado’.”

                Restas la nocio: funebro solviĝas per si mem, ĉar ĝi lokiĝas en la tavolo de konscia egoo; melankolio/depresio revenas al la nekonscio kaj kaŝas koleron, narcisismon aliformitan. Ĉe la plendado de melankoliulo kaŝiĝas akuzado.
                Oni ne devas simple konsenti pri tio, oni devas pensi. Same kiel pri ĉi tiu konsidero de la senindulga konanto de la homa animo, rilate al la melankoliulo, kiu konstante sin malŝatas:

“Kiam, en sia intensa memkritikado, li sin priskribas kiel malindulon, egoiston, malhonestulon kaj dependulon, kiu ĉiam nur zorgis pri kaŝado de siaj propraj malfortecoj, eble niaopinie li sufiĉe alproksimiĝis de memkono, kaj ni demandas nin mem, kial necesis malsaniĝi por atingi tian veraĵon.”

“Funebro kaj Melankolio” estas unu el tiaj tekstoj, al kiu oni devas reveni. Estas tre probable, ke ĉiu alia ravita leginto trovos aliajn angulojn kaj legmanierojn. Kaj ke mi mem, kiam mi relegos ĝin, elektos ankoraŭ aliajn. Pro tio temas pri klasikaĵo. Dankon, frato.

domingo, 28 de dezembro de 2014

A DOCE FACE DE SANDRA




A Justiça argentina concedeu habeas corpus a Sandra, uma orangotango ruiva que passou cada dia de seus 29 anos de vida no cativeiro.
Duas expressões me perturbam na notícia: a expressão facial de Sandra e a expressão verbal “pessoa não humana” com que se descreveu a beneficiada. Foi assim que se justificou a decisão: trata-se positivamente de uma “pessoa”, pois que aprende, tem sentimentos, toma decisões e se comunica. Faz jus portanto aos tratos que merecem todas as pessoas, entre os quais, destacadamente, o da liberdade e o da dignidade de viver em paz.
Resta compreender o que é uma pessoa não humana. Simples. Não é humana porque não é formada, geneticamente, da mesma estrutura molecular que configura a espécie Homo sapiens (embora fique bem perto). Sobra a conclusão de que é uma pessoa de outra espécie – a espécie dos orangotangos. O que não lhe retira o caráter de pessoa, no sentido de que tem individualidade. Ela é Sandra, não é outro orangotango. É peculiar.
Quem ainda tiver alguma dúvida, ignore esse breve arrazoado acima, acesse o youtube e contemple com atenção a doce face de Sandra.


LA DOLĈA VIZAĜO DE SANDRA

La argentina Justeco donis habeas corpus al Sandra, rufa ina orangutano, kiu pasigis ĉiun tagon de siaj 29 vivojaroj en kaptiteco.
Du esprimoj min perturbas el tiu informo: la vizaĝesprimo de Sandra kaj la lingva esprimo “nehoma persono”, per kiu oni priskribis la favoritinon. Tiel oni pravigis la decidon: temas fakte pri “persono”, ĉar ŝi lernas, sentas, decidas kaj komunikas. Ŝi do rajtas ricevi la traktadon, kiun meritas ĉiuj personoj, interalie  precipe liberecon kaj la dignon vivi en paco.
Mankas kompreni, kio estas nehoma persono. Simple. Ŝi ne estas homa ĉar ŝin ne formas genetike la sama molekula strukturo, kiu karakterizas la specion Homo sapiens (malgraŭ ke tre simila). Restas do la konkludo, ke ŝi estas persono de alia specio – la specio de orangutanoj. Kio ne forprenas de ŝi la econ de persono, en la senco ke ŝi estas individueca. Ŝi estas Sandra, ne iu alia orangutano. Ŝi estas unika.

Kiu ankoraŭ dubas, tiu ignoru la nelongan eksplikon ĉi-supre, aliru al youtube kaj kontemplu atente la dolĉan vizaĝon de Sandra.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

POR TRÁS DOS OLHOS

Aos domingos íamos passar a manhã no sítio do avô. Sempre um encanto. Corríamos atrás das galinhas e dos bezerros, encontrávamos ovos nos ninhos, aprendíamos a ordenhar e a distinguir piados no mato. Molhávamos os pés no riacho. Ali era bom ser criança.
Lembranças.
Eu gostava especialmente de ir ao curral e olhar de perto as vacas que se aproximavam da cerca para ganhar uma folha verde. Os olhos me fascinavam, grandes olhos luzidios que piscavam e tremiam com as moscas. E me olhavam às vezes longamente, cheios de mistério. Eu sentia um desejo reiterado e poderoso de saber o que pensaria aquele enorme animal, por trás daqueles olhos.
 Nunca soube.
...
Há dias um grupo de fanáticos entrou numa escola, no Paquistão, e massacrou uma centena e meia de crianças. Passado o horror, os fotógrafos registraram o resultado. Arrependi-me de ter visto uma das fotos.
A defesa foi uma fantasia. Vi-me diante de uma grade de ferro. Do outro lado está um fanático infanticida. Ele me olha fixamente. Sinto desejo de saber que pensamento existe por trás daqueles olhos.
Nunca saberei: é só um enorme animal.

MALANTAŬ LA OKULOJ

Dimanĉe ni kutimis pasigi la matenon en la bieneto de la avo. Ĉiam rave. Ni kuradis post kokinoj kaj bovidoj, ni trovadis ovojn en nestoj, ni lernis melki kaj percepti birdpepojn en la arboj. Ni plonĝigis niajn piedojn en riveretojn. Tie infanaĝo estis agrabla.
Rememoroj.
Al mi aparte plaĉis veni al la stalo kaj rigardi de proksime bovinojn, kiuj alproksimiĝis al la barilo por ricevi verdan folion. La okuloj min ravis, grandaj okuloj relumantaj, kiuj fermetiĝadis kaj tremetadis pro la muŝoj. Kaj foje rigardadis min longe, plenaj je mistero. Mi sentis ripetan kaj potencan deziron scii, kion pensas tiu grandega besto, malantaŭ tiuj okuloj.
Mi neniam eksciis.
...
Antaŭ kelkaj tagoj, grupo da fanatikuloj envenis lernejon en Pakistano kaj masakris ĉirkaŭ cent kvindek infanojn. Post la hororo, fotistoj registris la rezulton. Mi pentis, ke mi rigardis unu el tiuj fotoj.
Mia defendis min per fantazio.
Mi vidis min fronte al ferkadro. Ĉe la kontraŭa flanko staras unu infanmurdinta fanatikulo. Li rigardas min fikse. Mi eksentas deziron scii, kia penso ekzistas malantaŭ tiuj okuloj.

Mi neniam scios: tiu estas nur grandega besto.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

PARESTESIA



Um ponto
na perna
da pessoa
pinica
que parece
que pousou
pernilongo
pronto
para
picar.
Ou pulga,
carrapato,
ou fiapo
de pano
ou de pena.
Pura
impressão:
apenas
impertinente
provocação
da pele.
A parestesia é a paranormalidade do corpo.

PARAESTEZO

Punkton
de piedo
piketas
pinĉe
pulo
impertinenta.
Aŭ splito
de pajlo,
aŭ de plumo?
Pluvero?
Senpere
perdiĝas
la propra
perceptokapto
la pura,
kaj aperas
paralela
miskoncepto
konspira,
trompa,
petola.
Paraestezo estas paranormaleco de la korpo.

domingo, 30 de novembro de 2014

PEREGRINAÇÃO



São boas as palavras que dizem,
cajado na mão dos peregrinos;
poderosas as  que silenciam,
lufada na face dos peregrinos.
São boas as palavras que soam,
mel na boca dos peregrinos;
sólidas as  que pairam,
silvo no anoitecer dos peregrinos.
São boas as palavras que ensinam,
sandálias sob os pés dos peregrinos;
purificadoras as da dúvida,
aves migratórias no céu dos peregrinos.
Há palavras para os pés,
para os olhos,
para o coração.
Mas não há peregrinação sem palavras.

PILGRIMADO

Estas bonaj la vortoj, kiuj diras,
bastono en la mano de pilgrimantoj;
potencaj tiuj, kiuj silentas,
blovo sur la vizaĝon de pilgrimantoj.
Estas bonaj la vortoj, kiuj sonas,
mielo en la buŝo de pilgrimantoj;
solidaj tiuj, kiuj ŝvebas,
siblo en la vesperiĝo de pilgrimantoj.
Estas bonaj la vortoj, kiuj instruas,
sandaloj sub la piedoj de pilgrimantoj;
purigaj tiuj, kiuj pridubas,
migrantaj birdoj sur la ĉielo de pilgrimantoj.
Ekzistas vortoj por la piedoj,
por la okuloj,
por la koro.
Sed ne eblas pilgrimado sen vortoj.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

ARTESANIA



Era moça bondosa.
Por isso se admirou muito quando ficou sabendo que havia a palavra artesania.
Falou artesania  várias vezes, em voz alta.
Ouviu então uma profusão de violinos.
Ouviu o sereno da noite,
seu próprio medo de não existir,
o gosto de um fruto exótico,
a sede,
a fome,
a deselegância dos cotovelos,
as euforias da primavera.
Ouviu a própria ovulação, no âmago,
a cor dos olhos,
bem como as tentações de cada entardecer,
os desejos, os desejos.
Gostou tanto que botou nome na sua gatinha: Artesania.
A gatinha apreciou deveras e passou a miar poesia.


TAJLI

Ŝi estis bonkora junulino.
Tial ŝi tre miris, kiam ŝi eksciis, ke ekzistas la vorto tajli.
Ŝi parolis tajli laŭte, plurfoje.
Tiam ŝi ekaŭdis amason da violonoj.
Ŝi aŭdis la noktan roson,
sian  propran timon pri neekzisto,
la guston de ekzotika frukto,
soifon,
malsaton,
la malelegantecon de kubutoj,
eŭforiojn de printempo.
Ŝi aŭdis sian propran ovoladon, interne,
la koloron de la okuloj,
same kiel la tentojn de ĉiu vesperiĝo,
 la dezirojn, la dezirojn.
Ŝi tiel multe ŝatis, ke ŝi nomis sian katineton: Tajla.

Al la katineto tio efektive plaĉis, tiel ke ĝi komencis elmiaŭi poezion.

domingo, 9 de novembro de 2014

LIBERDADE


Ao fim do dia os passos se tornam  lentos,
sólidos, a bater o chão  com a correta presteza,
como em obediência  a um rumo muito antigo,
isentos de busca,
libertos de indagação.
Ao fim do dia os olhos já não perscrutam,
apenas divisam os justos contornos,
como a traçar as coisas do mundo que sempre existiram,
desapegados da  luz,
ao largo da sombra.
Ao fim do dia as mãos seguram com calma o bastão,
amolentadas por doce fadiga,
como cordas que amarram navios, num cais deserto,
esquecidas de sua função,
desenoveladas.
Ao fim do dia, após o trabalho,
o homem pode enfim respirar,
comer um prato, beber um copo,
sentar-se, arriscar um palpite sobre o tempo.
Já não é preciso explicar a vida.


LIBERECO

Je la fino de la tago la paŝoj fariĝas malrapidaj,
solidaj, kaj frapas la grundon per ĝusta lerto,
kvazaŭ ili obeus  tre antikvan direkton,
sen serĉado,
liberaj de demandoj.
Je la fino de la tago la okuloj jam ne gvatas,
apenaŭ duonvidas precizajn konturojn,
kvazaŭ ili strekus tion, kio ĉiam ekzistis en la mondo,
senatentaj pri lumo,
preter ombro.
Je la fino de la tago la manoj trankvile tenas la bastonon,
moliĝinte de dolĉa laceco,
kvazaŭ ŝnuroj ligitaj al ŝipoj ĉe  senhoma kajo,
kiuj forgesis sian celon,
malbobenitaj.
Je la fino de la tago, post la laboro,
homo  fine povas spiri,
manĝi la enhavon de telero, trinki la enhavon de glaso,
sidi, riski prognozon pri la vetero.
Jam ne necesas ekspliki la vivon.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A FUGA



Era uma construção em ruínas que mais parecia um labirinto. Perto dali espocavam tiros. Deparou com um soldado fortemente armado e enfiou pelos corredores. Parou, esperou. Logo reapareceu o soldado. Nova fuga, agora mais longa e mais funda pelos cômodos que se sucediam interminavelmente. Silêncio. Até que a sombra brotou de novo num canto. Mais rápido, mais fundo. Viu-se agora num cômodo sem saída. Nem janela, nem porta, nem corredor.
Decidiu então que era hora de acordar.

FORKURADO

Tio estis ruina konstruaĵo, kiu pli similis labirinton. Proksime de tie eksplodis pafoj. Li ektrovis forte armitan soldaton kaj enkuris en koridorojn. Li haltis, atendis. Baldaŭ reaperis la soldato. Denove forkurado, nun pli longa kaj pli profunda tra ĉambroj, kiuj sinsekvis senfine. Silento. Ĝis reaperis la ombro post angulo. Pli rapide, pri profunden. Nun li troviĝis en senelira ĉambro. Nek fenestro, nek pordo, nek koridoro.

Tiam li decidis, ke estas taŭga momento por vekiĝo.

domingo, 26 de outubro de 2014

DECLARAÇÃO DE VOTO


Hoje é 26 de outubro e temos eleições no Brasil.
Eu voto no direito de dar quirera aos pardais,
de acariciar meu velho cão,
de contemplar longamente a flor do maracujá.
Voto pela névoa da manhã,
pelo ar da primavera,
pela eloquência da noite,
pela elegância do amanhecer.
Voto pelo direito de escrever a lápis,
de conversar sobre o pôr-do-sol,
de ler em voz alta um poema de Adélia Prado.
Voto na manutenção do mistério das palavras,
numa sonata de Mozart,
no objeto que o artesão produz,
na saudade de um amigo,
na nostalgia do que nunca tive.
Voto na nuvem,
voto na lua cheia,
voto no café da manhã,
voto nos pés de tomate de todas as hortas deste país.
E me recuso a votar em branco:
voto em azul.

DEKLARO PRI VOĈDONO

Hodiaŭ estas la 26-a de oktobro kaj ni havas balotadon en Brazilo.
Mi voĉdonas por la rajto disĵeti panerojn al paseroj,
karesi mian maljunan hundon,
longe kontempli la floron de pasifloro.
Mi voĉdonas por la matena nebulo,
por la aero en printempo,
por la elokventeco de la nokto,
por la eleganteco de la mateniĝo.
Mi voĉdonas por la rajto skribi per krajono,
babiladi pri la sunsubiro,
voĉlegi poemon de Adélia Prado.
Mi voĉdonas por la konservado de la mistero de vortoj,
por sonato de Mozart,
por objekto, kiun metilaboristo produktas,
por la sopiro pri amiko,
por la nostalgio pri tio, kion mi neniam havis.
Mi voĉdonas por la nubo,
mi voĉdonas por la plena luno,
mi voĉdonas por la tomatujoj, en ĉiuj legomĝardenoj en ĉi tiu lando.
Kaj mi rifuzas voĉdoni blanke:

mi voĉdonas blue.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

METADE





Construí  minha casa pela metade.
Paredes de metro e meio,
as portas sem fechadura,
escadas sem corrimão.
A mesa não tem cadeiras,
o prato não tem talher.
Há no quintal meia horta
e meia lua no céu.
Nessa casa de meeiro
habita pela metade
metade do meu desejo,
as minhas meias palavras.
Só permanece o meu sonho,
inteiro, inteiro, inteiro.


DUONO

Mi konstruis mian domon ĝis la duono.
Unu metron altaj muroj,
la pordoj sen la seruroj,
ŝtuparoj sen apogiloj.
La tablo ne havas seĝojn
telero sen manĝilaro.
En korto, ĝardenduono,
sur ĉiel’ duon’ de lun’.
En tia domo duono
de homo duone vivas,
duone laŭ la deziro,
duone laŭ siaj vortoj.
Kompleta restas nur revo,

kompleta,kompleta, kompleta.

sábado, 4 de outubro de 2014

ÁGUA E SABÃO



Era uma freirinha esperta e muito prática. Fazia as coisas sem muita pergunta.
Como o estio se prolongasse para além de setembro, estava tudo muito empoeirado, as gargantas secas e as tosses judiando.  A imagem de Nossa Senhora também: sujinha, sujinha de pó.
Lá fora, o céu azul-aço, de tanta seca. Foi a freirinha lavar a santa, com água e sabão.
Findo o serviço, olharam-se as duas para o acerto:
-          Lavei a Senhora, mas tenho um pedido: que mande uma chuva, logo logo.
Às quatro da tarde reboou o primeiro trovão.
Como se sabe, lavar santo traz chuva.


AKVO KAJ SAPO

Ŝi estis lerta, tre praktika monaĥineto. Ŝi faris ĉion sen  multe da demandoj.
Ĉar la seka sezono daŭris tro longe, ĝis post septembro, ĉio estis tre polva, la gorĝoj sekaj, la tusado turmentadis. Ankaŭ la statuo de Nia Sinjorino: malpura, polvmalpura.
Ekstere, la ĉielo estis ŝtalblua, sekvetera. La monaĥineto jen alvenis por lavi la sanktulinon, per akvo kaj sapo.
Post la laboro, ili du sin rigardis reciproke por interkonsento:
-          Mi lavis vin, Sinjorino, sed mi havas peton: ke vi sendu pluvon, tuj tuj.
Je la kvara posttagmeze eksonis la unua fulmotondro.

Kiel oni scias, lavi statuon de sanktulo alportas pluvon.

sábado, 27 de setembro de 2014

LIBIDO




Quando o médico chegou ao abrigo de idosos para a visita semanal, a enfermeira, pressurosa, veio logo colocá-lo a par dos últimos acontecimentos.
D. Serena, 81 anos, “afeiçoou-se” ao Sr. Felisberto, 79 anos. E o Sr. Felisberto “estava de graça” com ela. O doutor não pôde evitar um sorriso filosófico, mas não teve tempo para desenvolver alguma ideia sobre a função social do eufemismo.  A enfermeira, indignada, anunciava que a diretoria já estava ciente, e ia reunir-se em breve para decidir qual do dois seria expulso.
Um esclarecimento de ordem técnica. D. Serena, demente em grau avançado, já não consegue articular duas frases simples, nunca sabe o que se  passou há 10 minutos e não reconhece qualquer familiar. O Sr. Felisberto, sim, é relativamente lúcido mas sofre de parkinsonismo , não dá dois passos sozinho e precisa de ajuda para se alimentar e banhar.
O médico deu um suspiro fundo, pôs a mão no ombro da enfermeira e murmurou:
- Vamos à visita.

LIBIDO
Kiam la kuracisto alvenis en la maljunulejo por la ĉiusemajna vizito, la flegistino ekscitite tuj informis lin pri la lastaj okazaĵoj.
Sinjorino Serena, 81-jara, “ekestimas” Sinjoron Felisberto, 79-jaran. Kaj Sinjoro Felisberto “ludas” kun ŝi. La doktoro ne povis eviti filozofian rideton, sed li ne havis tempon elvolvi ideon pri la socia funkcio de eŭfemismo. La flegistino, indignante, informis, ke la estraro jam scias pri tio, kaj baldaŭ kunsidos por decidi, kiu el ili estos forigita.
Teknika klarigo. Sinjorino Serena, demenca je alta grado, jam ne sukcesas kunmeti du simplajn frazojn, neniam scias, kio okazis antaŭ dek minutoj, kaj jam rekonas neniun familianon. Sinjoro Felisberto ja estas relative konscia, sed suferas de Parkinson-simptomoj, ne sukcesas fari  du paŝojn sola kaj bezonas helpon por manĝi kaj baniĝi.
La kuracisto profunde suspiris, almetis sian manon sur la ŝultron de la flegistino kaj murmuris:

- Ni komencu la viziton.

MISTÉRIO




Na Polônia
as cegonhas negras
migram para a África:
é outono.
No meu quintal
o abacateiro se cobre
de flores douradas
e já não tem folhas
para derramar :
é primavera.
Neste momento, talvez,
alguém, da janela,
contemple as aves
no céu de Varsóvia,
e o vento já esteja frio.
Enquanto isso um bem-te-vi
passeia no meu quintal,
brincando de sol.
É um mistério, um grande mistério.

MISTERO

En Pollando
nigraj cikonioj
migras al Afriko:
estas aŭtuno.
En mia korto,
la avokadarbo kovriĝas
per oraj floroj
kaj jam ne havas foliojn
por faligi:
estas printempo.
Precize nun, eble,
iu homo ĉe fenestro
kontemplas la birdojn
sur la varsovia ĉielo,
kaj la vento  jam estas malvarma.
Dume, pitangbirdo
promenas sur mia korto,
kaj ludas sunon.
Mistero, ĝi estas granda mistero.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

AS DUNAS


As dunas na praia são catedrais cansadas,
a se fazer e refazer, intermináveis,
com o cimento da maresia,
com a seiva da folhagem rasteira.
Obedecem com humildade poderosa
às ordens de rudes lufadas.
Também meus pensamentos são construções obstinadas,
a se fazer e refazer, intermináveis,
com o cimento dos afetos,
com a seiva das ilusões.
Obedecem com simplicidade impotente,
às ordens de sopros imponderáveis.
Mas não desistem, as dunas,
e não desistem tampouco meus pensamentos.
Cabo Frio, julho de 2014.


DUNOJ

Dunoj sur plaĝo estas lacaj katedraloj,
kiuj fariĝas kaj refariĝas, senfine,
per la cemento de maraero,
per la suko de grimparbetaĵoj.
Ili obeas kun potenca humileco
ordonojn de krudaj blovoj.
Ankaŭ miaj pensoj estas obstinaj konstruaĵoj,
kiuj fariĝas kaj refariĝas, senfine,
per la cemento de amsentoj,
per la suko de iluzioj.
Ili obeas kun senpotenca simpleco
ordonojn de senpezaj blovoj.
Sed dunoj ne rezignas,
kaj ne rezignas same miaj pensoj.

Cabo Frio, julion 2014.

domingo, 15 de junho de 2014

LUA



Apareceu uma grande lua redonda sobre o Jabaquara.
Alguns se admiraram.
Outros nem viram.
Muitos tomaram o metrô.
Quando desembarcaram,
já não era a lua, não era o Jabaquara.
A lua sobre o Jabaquara foi uma só.


LUNO

Aperis granda, ronda luno super Jabaquara*.
Kelkaj homoj miris.
Aliaj eĉ ne vidis.
Multaj eniris la metroon.
Kiam ili eltrajniĝis,
jam ne estis luno, ne estis Jabaquara.
Tiu luno super Jabaquara estis unika.


*Jabaquara (elpar. ‘ ĵabakŭara ’) estas konata kvartalo en la urbo San-Paŭlo.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

SILÊNCIO


É preciso calar.
É preciso que transborde o silêncio,
e se afogue o desejo de imantar o outro.
Para quê interromper com palavras
o sentido dos dias,
das notícias,
dos livros
e ditos dos homens?
Para onde se dirigem as selvagens palavras?
Por que não há de bastar o leve rumor da aragem,
o farfalhar do fino cedro,
o doce ressonar de um cão?
Por que não me basto?
Meu Deus, dai-me o silêncio.

SILENTO

Necesas silenti.
Necesas, ke transbordiĝu  silento,
kaj dronu la deziro magnetumi  aliulon.
Kial rompi per vortoj
la sencon de la tagoj,
de informoj,
de libroj
kaj diraĵoj de homoj?
Kien iras la sovaĝaj vortoj?
Kial ne sufiĉas la malpeza murmuro de venteto,
la kraketado de maldika cedro,
la dolĉa dormosonado de hundo?
Kial mi ne sufiĉas al mi?

Mia Dio, donu al mi silenton.