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A mão culposa
que tinha ressequida uma das mãos.”
(Ev. Seg. Marcos, 3,1)
Não o sabia, ou não acreditou nisso o
ingênuo Jonas, dado a descrer de verdades como essa, de colorido, reconheça-se,
algo supersticioso. Não que fosse assim tão contestador; mais próprio seria
acusar-lhe o temperamento explosivo e colérico como explicação para o patético
safanão que aplicou em Marta, sua mãe, em meio a infeliz altercação causada
pela nora. A bem da verdade, tinham os dois, mãe e filho, o mesmo temperamento:
faziam primeiro, pensavam depois. Quando pensavam.
Aconteceu assim.
A nora, mulher de Jonas, não agia de
conformidade com as orientações da sogra, a quem os anos conferiam notória
sabedoria. Não aplicava os devidos panos ao neto, não saltava da cama antes do
nascer do sol, não temperava os cozidos com as corretas ervas, não frequentava o templo com decente pontualidade,
não baixava o olhar quando falava com os mais velhos, não se abstinha de
cozinhar menstruada, não evitava risadas abertas e escandalosas, não escondia
suas opiniões, mesmo sobre assuntos que não lhe diziam respeito – como as jóias
da família, por exemplo. De tal modo se foi alongando o rol das críticas, e tão
saturado foi ficando Jonas com tais venenos, que um dia derramou-se o leite,
com a excessiva fervura: a mãe conseguiu finalmente descontrolar o
temperamental rebento, ao expressar, sutil, a suspeita difundida por conhecida vizinha, célebre pela malícia dos
comentários: a Nora estaria de olhar comprido para um belo jovem da vizinhança!
Foi demais. O sangue ferveu na cabeça e
Jonas, cego e surdo para quaisquer verdades antigas, incontestáveis, universais
e muito conhecidas, estalou um tapa sonoro na cara da mãe. Sem muita força, é
verdade, mas também se sabe, com igual certeza, que em matéria de tapas valem
muito mais os efeitos morais e simbólicos que os resultados físicos. Era o que
a mãe mais queria. Dali em diante, bastaram o silêncio pesado, a pose dramática
e um leve tremor de lábios e pálpebras para que o filho se sentisse acusado do
mais feioso e venal dos crimes, bater na mãe. Ninguém o recriminou, nem o pai,
nem os irmãos, nem os amigos da família. Apenas o olhavam com cortante mistura de
censura e compaixão, já que o castigo era líquido e certo, e não
tardava.
Minutos depois da altercação e do infeliz
gesto, Jonas já se arrependera. Daquele ponto em diante, um avassalador e
inclemente remorso passou a invadir-lhe a alma. Semanas depois, acabrunhado,
experimentou os primeiros espasmos nos dedos da mão direita, a mão criminosa, a
mão imperdoavelmente culposa. Meses depois, ela já não funcionava, tão
crispados e contraídos estavam os dedos doídos, dobrados sobre a palma, a ponto
de tornar difícil a própria higiene, que se dirá do prosaico gesto de segurar
um copo ou uma colher. E não se estendam estas considerações ao transtorno que
passou a representar uma simples carícia no rosto da mulher, a nora mesma,
fulcro e foco de toda a tragédia.
A mão, à custa do desuso, permanentemente
contraída como ficara, entrou a atrofiar-se e se via com clareza, fato
confirmado pelo médico que Jonas consultou, que depois de algum tempo perderia
a função para sempre. O médico até recomendou exercícios, que Jonas não se
sentia no direito de tentar. Não antes de resolver a culpa; precisava primeiro
expurgá-la.
Foi quando ouviu falar do santo que curava
doenças impossíveis. Jonas foi até ele, e no caminho cogitava de lhe pedir a
misericordiosa cura. Só não sabia qual das duas pedir, se a do remorso ou a da
mão contraída. Tão transtornado de esperança e de temor se encontrava o pobre,
que não atinou que era um sábado, dia de folga do trabalho e dos milagres.
Entrou no templo com certo ruído, e todos se voltaram para a porta, a ver quem
vinha com tal alvoroço. No momento, o santo pregava na frente de todos, e
também ele interrompeu as palavras para
olhar quem entrava. Por um momento o silêncio e uma leve troca de olhares
atravessou o recinto sagrado. Era evidente que Jonas, visitante inesperado,
queria a cura, em dia de folga para curas. Os anciãos sorriam entre si,
maliciosos. Tivesse atinado com a impropriedade do rompante, e Jonas com
certeza teria proposto voltar no domingo – afinal já esperava há muitos meses
por uma solução para sua mão contraída, que já começavam a chamar de seca,
maldosa depreciação.
Mas o santo não se intimidou. Chamou Jonas
para o meio do templo, ele muito envergonhado
na frente de tantos importantes, e disse com toda a firmeza que o
curaria naquele sábado mesmo, e deu umas explicações a respeito de datas e
posses, que Jonas, cabisbaixo e desinteressado de qualquer coisa que não fosse
a sua pobre mão, não entendeu bem. Os anciãos se calaram, despeitados. O santo
então se inclinou e deu um olhar muito amigo e cúmplice, dizendo baixinho, para
que só o dono da mão ouvisse:
- Pode abrir, é só uma contração
autopunitiva...
E mais não disse, mas Jonas leu no olhar
do homem, sem dúvida um bom homem, outra mensagem complementar, não dita mas
bem pensada:
- Foi só um tapa. Ninguém morreu por causa
disso. Vai lá e pede desculpa. E já pode começar a usar a mão, de novo.
E a mão, de fato, foi-se logo relaxando, os dedos se descontraíram aos
poucos, ainda meio desacostumados dos naturais movimentos, mas claramente
dispostos a retomar a antiga função. Muito satisfeito, Jonas tomou o caminho de
casa, não sem antes admirar-se da falta de curiosidade de todos os presentes,
que em vez de lhe examinarem a mão para conferir o feito do santo, mais
pareciam preocupados em discutir o calendário.
Não importa. O que importa é que, naquela
noite, as carícias entre Jonas e sua mulher foram muito mais calorosas.
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